terça-feira, 17 de setembro de 2013

Capítulo 9 – Gula

 Vai fazer algo agora, Justin? – Perguntou Sel, aparecendo ao meu lado.

 Ahn... – Pensei numa desculpa. – Deixar Lindsay em casa, e depois sair com a minha mãe.

 Ah, então tá. Mande um beijo para ela. – Sel sorriu. – Até segunda. – Disse, passando sua mão em meu braço esquerdo, e partindo.

 Ok. Até. – Sorri.

Lindsay parecia estar com o corpo ali, mas a consciência em outro lugar. Ela nem reparara que havia pessoas por todo o corredor, e que eu estava em pé, ao seu lado.

 Lindsay. – Chamei-a. De nada adiantou. – Lindsay. – Chamei novamente, nada de novo. – LINDSAY! – Gritei.

O susto que ela tomara, a fez pular do sofá, e depois retornar ao assento, mas me olhando furiosa.

 Por duas vezes te chamei, educadamente, mas você não ouviu, então parti pro escândalo. – Justifiquei.

 Claro, sempre arranjando um motivo pra tudo. – Disse, revirando os olhos.

 Vamos. – Disse eu, começando a andar em direção ao elevador.

 Pra casa? – Perguntou, com uma ponta de animação na voz.

 Não. – Balancei a cabeça negativamente.

 Então pra onde vamos? – Sua voz subiu duas oitavas.

 Ainda não decidi. – Confessei.

Lindsay pôs-se ao meu lado, bufando, e entramos no elevador, que acabara de abrir as portas. Fomos calados até a garagem.

Entramos no carro. Pisei no acelerador, e saímos da garagem subterrânea para uma rua clara e arejada. O sol não cansava de iluminar cada metro quadrado, nos deixando um pouco exaustos e soados. Fechei as janelas, liguei o ar-condicionado, e fiquei imaginando um lugar que podíamos ir. Aquela reunião me deixara com fome.

 Sempre ficando por cima com sua arrogância, e seu egocentrismo. Incrível, como consegue?

 Segredo. – Soltou uma risada abafada.

Virei a cabeça pra trás e revirei os olhos. Empurrei o carrinho, andando com pressa. Fui para a ala de comidas que realmente davam sustento para o corpo. Dessa ala não peguei muitos mantimentos. Fui para a ala de laticínios. A partir dessa ala o carrinho começou a ficar cheio. A cada prateleira que eu passava, jogava algo no carrinho. Fomos para a ala das carnes. Depois dos frigoríficos. Congelados eram os meus preferidos, pois não tínhamos que nos preocupar se eles ficariam bons ou não, é só colocar no micro-ondas que tudo está resolvido. Isso é uma benção divina pra alguém tão preguiçosa como eu. Chegamos à ala de biscoitos. Nessa ala, Justin fez questão de me ajudar. O carrinho estava quase cheio. Justin ficou ao meu lado durante todo esse tempo, até que decidiu se afastar de mim, indo para outra ala. Empurrei o carrinho com pressa, para acompanhar seus passos. Ele entrara na ala de doce.

 Ah, não. Você não vai gastar seu dinheiro com doce, não é mesmo? – Perguntei, enquanto ele pegava três sacos de balas, cada um de um sabor.

 Vou, sim, porque?

 Lá em casa pode até faltar comida, mas doce jamais. E lembre-se: eu trabalho numa doceria. – Disse, com uma expressão de obviedade.

 Ah, é. Esqueci. Pelo menos isso. – Suspirou com ar de deboche, e devolveu os sacos as prateleiras.

Seguimos para a ala das bebidas, e depois para a dos vegetais e legumes. Era sempre bom comer algo saudável para quem vivia com doces constantemente. Encerramos essa maratona pelo mercado, e fomos para o caixa, pagar pelas compras. Na verdade Justin pagava, enquanto eu embalava as compras nas sacolas, e as colocava dentro do carrinho para levar até a garagem. Discretamente me atrevi a olhar o preço total da compra. Discretamente fiquei boquiaberta. Mesmo parcelado, demoraria meses para eu pagar tudo a Justin. Me arrependi de ter pego tanta coisa. Fora desnecessário. A moça do caixa entregou a nota para Justin, e nós seguimos em direção a garagem. Chegamos ao carro de Justin, tiramos as sacolas e as colocamos no porta-malas. Deixei o carrinho numa vaga vazia, e entrei no carro. Justin deu a partida, e seguimos para meu prédio.

Chegamos à garagem do prédio. Eram muitas sacolas para carregarmos. Pedi que Justin ficasse entre as portas do elevador para elas não fecharem enquanto eu descarregava o porta-malas. Coloquei todas as sacolas dentro do elevador, e dessa vez quem ficou na porta fui eu, para Justin fechar o carro. Ele voltou, e subimos.
O elevador parou, mas apenas eu saí. Justin ficara na porta enquanto eu carregava todas as sacolas para meu apartamento. Bem que ele gostou de ficar parado ali, não fez nenhum esforço para carregar nada. Peguei a última sacola, e caminhei para o apartamento, Justin veio no meu encalço.

Ele fechou a porta enquanto eu tirava as compras das sacolas, e as colocava no armário.

 Dá pra ajudar a colocar as compras pelo menos no armário? – Perguntei, virando para olhá-lo, e encostando-me no balcão.

 O pior eu já fiz, que foi pagar. Então pare de ser tão mal-agradecida, e faça isso sem reclamar. – Disse, jogando-se no sofá.

 A ajuda ao próximo mandou lembranças. – Disse, sarcástica.

 Argh. Você não cansa de ser irritante? – Bufou, e levantou, vindo me ajudar.

 Idem. – Disparei.

 Não sei onde guardo esses troços aqui. – Disse, pegando a sacola com os vegetais, e os legumes.

 Na gaveta de baixo, da geladeira. – Disse eu. – Mas coloque com cuidado, senão vai amassar.

 Ainda tem esse negócio de colocar direito pra não amassar? Credo. – Protestou, agachando-se para abrir a gaveta, e guardar os vegetais, e os legumes.

 Você já experimentou parar para ver sua mãe guardando as compras? – Perguntei, chocada com a falta de conhecimentos caseiros.

 Não. – Disse, pensativo.

 Então experimente, talvez você não seja um dono de casa tão ruim quanta aparenta ser.

 Falou a melhor dona de casa, né?

 Guarde logo isso.

Ficamos em silêncio enquanto terminávamos de guardar tudo. Joguei as sacolas na lixeira, e fui para o banheiro lavar as mãos, Justin veio atrás, para lavar as suas também. Lavamos nossas mãos e voltamos para a sala.

 Qual será o filme de hoje? – Perguntou Justin, sentando-se no sofá e abrindo seus braços, os estendendo por cima do encosto.

 Não terá filme. – Disse firme.

 Como é? – Virou-se para me olhar, não acreditando no que eu dissera.

 É isso, não terá filme nenhum.

 Pelo menos ligue a TV.

Peguei o controle ao lado da TV e a liguei. Joguei o controle ao seu lado.

 Aonde vai?

 Creio que você me levou ao mercado para comprar, e depois vir comer aqui, ou não?

 Ah, sim. Exatamente.

 Vou preparar alguma coisa.

Abri o freezer. Peguei a caixa de lasanha de quatro queijos que acabara de guardar. Fechei o freezer. Tirei a embalagem da lasanha, e a joguei na lixeira. Coloquei-a no micro-ondas. Abri a porta do armário superior, e peguei uma lata de leite condensado, e uma de achocolatado. Peguei uma pequena panela de inox e a coloquei no fogão, acendendo o fogo. Primeiro despejei o leite condensado, logo após despejei algumas colheradas de achocolatado. Peguei uma colher laranja, sua textura era mole, mas era desse jeito para não arranhar a panela enquanto eu mexia. Passei aproximadamente 5 minutos na frente do fogão mexendo o brigadeiro de panela. Após estar pronto, coloquei-o numa tigela de vidro e o levei ao freezer, para esfriar mais rápido.

Lavei minhas mãos ali na pia mesmo, e as sequei no pano de prato. Enquanto aguardava a lasanha ficar pronta, fui sentar ao lado de Justin.

 Basquete? – Perguntei com desdém.

 Óbvio. Você não gosta? – Perguntou, observando a partida na TV.

 Não tenho nada contra, mas não curto perder meu tempo em frente à TV vendo isso. – Apontei para a TV.

 Mas perde seu tempo com marginais e fumando. – Disparou, ainda observando a TV.

 Mas mesmo marginais eles ainda são melhores que você. – Cuspi as palavras.

 Desde quando eles te levaram no mercado e gastaram tanto com compras? Isso é se eles comerem, né. Ah, eles comem, mas são vegetarianos, só ficam na erva. – Zombou.

 Se são as compras que você quer, ótimo. Pegue tudo! Não preciso disso. A lasanha você come, e o resto leva pra casa. Estúpido!

 Eu não quero nada. Porém estou mostrando que eles não são melhores do que eu. – Deu de ombros.

 Ninguém é melhor ou pior do que ninguém. Aliás, estou começando a discordar disso, você é pior que muita gente por aí.

 Mas não pior que você. – Me olhou com frieza e desprezo.

Perplexa, ergui meu braço direito para acerta-lhe um tapa bem dado no rosto, mas faltou luz. O desespero tomou conta do meu consciente, e de meu inconsciente. Eu tinha fobia de escuridão. Tentei fazer com que meu medo fosse retrogrado, mas foi em vão, não consegui refrear nada. E na hora do desespero não há lugar para o orgulho. Agarrei Justin, e o abracei com força, apertando meus braços em volta de sua cintura. O peguei de surpresa, mas ele não pareceu se incomodar, e retribuiu o abraço, de forma que me deixou reconfortada naquela escuridão.

 Uma ótima maneira de pedir desculpa sem precisar falar. – Disse Justin, como sempre presunçoso.

 Eu não estou tentando te pedir desculpas, idiota.

 Então me solte. – Disse, tirando seus braços de minhas costas e me afastando.

 Não! – Gritei, com o grau do medo aumentando a cada centímetro que Justin me afastava dele. – Por favor, não faça isso. – O agarrei novamente.

 Mas o que tá acontecendo? Isso é um pretexto pra me beijar? Cuidado que pode acabar funcionando hein... – Disse, prepotente.

 Ao menos uma vez ajude alguém que realmente precisa de ajuda sem presunção.

 Não sou reabilitação.

 É claro que não. – Disse, tensa.

Mas a tensão era por causa de Justin, não pela escuridão.

 Então porque você me abraçou? Tem que ter algum motivo.

 Eu tenho fobia de escuro. – Admiti.

 Para ter fobia é preciso ter algum motivo também.

 Isso não vem ao caso.

 Então me solte. – Disse, quase me afastando. Porém eu o segurei pelos braços.

 Não! Pare de charme.

 Eu quero saber.

 Nada de importante. Esqueça isso, não vai influenciar em nada na sua vida. – Disse, tentando fazer com que ele desistisse.

 Você e seus mistérios. Desvende-os logo. – Pediu.

 Não posso. – Sussurrei.

 Você nunca pode! – Alterou seu tom de voz.

 Nunca posso? Nos conhecemos ontem, por favor, né...

 Mas você já está aqui me abraçando, dizendo que tem fobia de escuro. Já disse que se envolveu com um marginal, que não mora com seus pais, que vive sozinha, que não estuda, pois trabalha. E Isso não tem nada a ver com esse assunto.

 Custa falar? – Insistiu.

 Justin, eu sei que você não se importa com o que eu sinto, mas eu não vou falar nisso, porque dói muito. Me machuca internamente. Nunca conseguirei falar nisso, e não sentir dor, sempre choro lembrando. E eu não quero chorar, primeiro: porque não gosto, segundo: não faria isso na sua frente.

 Já sei, algum romance seu não deu certo, o carinha terminou com você no escuro, daí essa fobia? – Disse, querendo animar o momento.

 Antes fosse.

 Não vou insistir nisso. Você acabará falando de alguma forma.

 Dificilmente.

 Dificilmente não é impossível.

A luz voltara. Imediatamente me afastei de Justin, para não haver prepotências imediatas. Ouvi o barulho do micro-ondas quando ele ligou automaticamente. Em minutos a lasanha ficaria pronta. Fiquei ali esperando, sem graça, já estava me arrependendo de ter abraçado Justin. Ele usaria isso como pretexto para zombar de mim.

O micro-ondas apitou, anunciando que a lasanha já estava pronta. Levantei, andei até o balcão e peguei uma luva de cozinha. Coloquei a luva e tirei a lasanha, colocando-a em cima do balcão para esfriar. Peguei os dois pratos no corredor e os talheres. Peguei uma faca maior na gaveta de talheres, e cortei a lasanha na metade, colocando cada parte num prato. Fui para a geladeira, peguei o catchup, e a coca. Voltei para o balcão, e enchi dois copos com a coca.

 Vem pegar o seu prato. – Avisei a Justin, enquanto ia para o sofá.

Coloquei meu prato, o catchup, e o copo sobre a mesinha de centro, sentei no chão, coloquei catchup por toda a lasanha, peguei os talheres, e dei a primeira bocada na lasanha, que por sinal estava surreal. 

 Por que você não traz? – Perguntou, levantando do sofá.

 Aqui não tem empregada, não, meu bem. Mesmo que você faça compras pra mim. – Sorri.

Bufando, ele levantou, e foi pegar seu prato e o copo com a coca. Justin voltou, sentando-se ao meu lado. Ele já estava pronto pra comer, mas parou, lembrando-se de algo.

 Me passa o catchup, por favor? – Perguntou.

Dei o catchup a ele. Justin o destampou, sacudiu, e o apertou, mas na direção errada. Senti a massa vermelha bater em minha blusa e escorregar pelo tecido.

 AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA! – Gritei, explodindo de raiva. Minha respiração ofegante me fazia bufar pelo nariz.

 Foi. Sem. Querer. – Ergueu os braços, como prova de inocência.

 Sem problemas. – Disse, ficando calma de repente, e tendo uma idéia.

Peguei meu copo de coca. Joguei tudo no rosto de Justin.

 Foi. Sem. Querer. – Imitei-o, irônica.

Justin passou as mãos sobre seus olhos, para escorrer o líquido, e poder me olhar. Se fosse possível, sua cor de vermelha passaria para roxo, quase preto. Ele bufava, ofegante. Isso estava me assustando. Justin abaixou, a modo de pegar seu prato com a lasanha. Astuta, ou não, previ seu movimento e o impedi.

 Não! – Segurei seus punhos. – A lasanha não, vai por mim, tá uma delícia. E é pecado desperdiçar comida, principalmente aqui em casa, que constantemente está em falta.

Justin emitiu um som, de quem queria rir, mas não podia. Ele não resistiu, e soltou uma risada escandalosa, que ecoou por todo o apartamento. Me deixei levar por esse breve momento que Justin não tentou ser arrogante comigo, e ri junto com ele. Por pouco ele não deixou o prato cair, já estava sem forças de tanto rir. O ajudei a colocar o prato na mesa, e continuamos rindo. Caímos no sofá, já sem força. Minha barriga doía como nunca, e com certeza a de Justin também, pois ele mantinha as duas mãos sobre ela. Eu já não sabia porque estávamos rindo tanto, provavelmente porque cansamos de ostentar que éramos fortes, e nos rendemos, mostrando o quanto éramos bobos, e que rir sempre fazia bem.

 Chega. Ai, ai. – Disse Justin, inspirando o ar, e soltando, para se controlar.

O fitei com uma expressão risonha, e ele riu novamente.

 Pare, por favor. Preciso comer, estou sem forças. – Disse, sentando-se no chão, com as pernas por debaixo da mesinha, e pegando os talheres para comer. Fiz o mesmo. – Você vai continuar com essa blusa? – Perguntou, de boca cheia.

 Ah, é. Você me distraiu, e eu esqueci de tirar. – Tirei a blusa, e a joguei no corredor.
Justin me fitou, boquiaberto, ainda com a lasanha na boca.

 Argh, pare de ser nojento. Engula logo isso. – Comentei, dando uma garfada na lasanha, e levando-a a boca.

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